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Bairro do Calhau: uma aldeia dentro da cidade



“Vivo aqui há cinquenta anos e gosto de viver aqui. O ambiente é saudável, calmo e não há desacatos. Só tenho bem a dizer. O bairro não era nada disto; era um bairro velho, com casas velhas. Depois fez-se uma associação e aí fizeram este bairro, onde habitam muitas pessoas, dos idosos aos mais pequenos.” Quem o diz é Natália, sentada no passeio a apanhar o sol de final de tarde junto das suas amigas, Céu e Graça. Enquanto uma lê o livro do Papa Francisco oferecido pela filha, outra vai já no segundo par de calças cosido nessa tarde. Já a Céu dá à língua, nesta que é uma tarde típica num bairro que mais se assemelha a uma aldeia.




Falamos do Bairro do Calhau, situado na freguesia de São Domingos de Benfica. Um bairro de casas térreas adornadas com vasos floridos onde se pode sentir o cheiro da roupa acabada de estender. Um bairro onde se cruzam os olhares curiosos que tentam desvendar quem por lá passa e onde se recebe sempre um “Bom dia” ou um “Boa tarde” como resposta. Um bairro que em tempos não passava de barracas, mas que num mandato da Câmara de Lisboa, o presidente da Câmara, Nuno Krus de Abecasis, juntamente com a Associação do Bairro fundada a 8 de Setembro de 1976, foi reconstruído. O marido da Céu pertenceu aos fundadores da Associação, porém é a própria quem começa por afirmar que hoje esta não é o que já foi em tempos. Também Rosa e Julieta, moradoras do Bairro, tocam neste assunto: “Antigamente a velhota, que já tinha os seus 90 anos, fazia as festas, fazia tudo muito bom e bonito. Quando ela morreu, cada um puxou para o seu lado e ninguém se entende. Agora serve para os jogos. De cartas, de dominó e de mil e uma coisas”. Aquilo de que Julieta sente mais saudades no Bairro é do seu marido, que acredita que partiu mais cedo devido às tardes passadas na Associação, entre jogos e copos de vinho tinto.


Rosa tem 79 anos e está no Bairro há cerca de trinta com o seu marido, Francisco. São vizinhos de Julieta que em tempos viveu no Bairro com o seu marido, mas hoje partilha a casa com a filha, com o genro, com o neto e com o caniche Tomé.


Uma das mais-valias do Bairro acabam por ser as festas, como a do São Martinho, que levam a que os habitantes saiam de casa e convivam. No entanto, a Natália e a Graça contam com algum desgosto que a festa do Dia da Mulher já não foi a tempo de ser organizada este ano pois não havia direção que o fizesse. Esse problema foi resolvido recentemente com a eleição de uma nova direção. O recém-eleito vice-presidente da Associação dos Moradores Flor da Serra, João Carias Mendes, justificou o actual estado da Associação com problemas herdados de direções anteriores, levando à necessidade de arranjar uma nova direção que permitisse assegurar um bom trabalho. De acordo com o vice-presidente, os maiores desafios que a Associação enfrenta são a falta de jovens e a falta de dinheiro e aponta também que “existem pessoas que fazem críticas à Associação, mas depois não se mostram preocupados e não querem saber”.


Para alguns moradores do Bairro, o posto médico que em tempos existiu é algo que faz muita falta. Para além disso, as pedras das ruas são outra falha que precisa de ser resolvida, tendo em conta que a população do Bairro é muito envelhecida. A propósito disto, Natália lembra que “quando não são pessoas de idade, são doentes. E se não são de idade ou doentes, já andam coxos”, relembrando a necessidade de um melhoramento do piso. Quem se mostrou exaltada com este assunto foi Rosa: “As pedras estão desalinhadas, uma está mais alta do que a outra e eu com o frio magoo-me. Andei três meses a tratar do dedo do pé porque estou ali a fazer um espigão”. Também Céu se mostra preocupada com esta situação desde que o seu marido sofreu um AVC, pois vê uma estrada que não tem “pés nem mãos por onde se pegar para sair com uma pessoa que não fala nem anda”. Hoje, Céu vê no Bairro do Calhau um sítio triste. “Estou muito arrependida por ter comprado a casa. Há um ano que se não peço ao meu filho ou a um vizinho, não tenho nada em casa”.


Esta situação remete para outra queixa que é recorrente entre as pessoas: a falta de uma mercearia. Tal como Graça afirma: “Aqui não há nem para comprar uma carcaça. Temos que nos deslocar até à estrada de Benfica”. Porém, nem sempre foi assim. Já existiu uma mercearia no Bairro que acabou por fechar. Isto exige um sentimento de solidariedade entre os habitantes: “Nós não temos nada. Temos de trazer lá de baixo de Sete Rios e muitas das pessoas já estão numa idade avançada. Quando vamos para a rua temos de pensar em dar a mão às pessoas mais idosas para que elas não tenham que ir lá a baixo comprar uma carcaça ou um bocado de peixe ou de carne”. Natália continua ao relembrar o caso da sua vizinha que com mais de 90 anos se põe à espera que as pessoas lhe levem pão: “E quantas vezes eu faço o comer e lho levo. E não me importo porque não me faz falta. Mas porta sim, porta não, é tudo gente velha. É população muito envelhecida e só por isso já merecemos o respeito”.


Enquanto vice-presidente da Associação, João Carias Mendes também reconhece que faz falta uma mercearia. Porém, acredita que tinha de ser um processo muito bem estudado porque “as pessoas estão habituadas a sair do autocarro e a ir às compras”. Quanto à falta de pessoas mais jovens, o problema é que estes não mostram interesse pelo Bairro. “Há aí malta nova, só que não vêm cá. Vêm dois ou três, mas era bom que viessem mais para aqui”. Já o senhor Francisco acredita que os jovens que existem vêm apenas “para passear”, pois como Natália afirma esta é uma zona muito concorrida para passear os cães e brincar com as crianças, passando-se ali “umas tardes em beleza”.


A falta de jovens não significa, ainda assim, que não exista um espírito jovial. Prova disso são a Rosa e o Francisco que, com 79 e 80 anos respectivamente, não deixaram a juventude escapar. Os dias são ocupados em passeios que quando não são feitos de autocarro, são a pé: “Já cheguei uma vez a ir de Sete Rios à Baixa, fui para a avenida, fui vendo coisas até chegar lá a baixo”. E quanto a Francisco, “Ah! Foi! Para onde vai um, vai outro”. Esta cumplicidade é o resultado de uma relação de quarenta anos que, como conta Rosa, é conseguida através do respeito mútuo: “Logo de início tem de haver respeito entre um e outro. Sentarem-se numa mesa e conversar sobre essa parte. Se ele tiver alguma coisa para me dizer, diz-me, para eu responder. Se eu tiver alguma coisa de que não gostei e que queira dizer, falo com ele”. “Nunca me disseste isso a mim!”, responde Francisco entre risos.




Este é o Bairro do Calhau. Um bairro com traços rurais que faz lembrar uma aldeia: as portas das casas abertas, os gatos que percorrem a rua, a entreajuda necessária entre os moradores que deriva dos problemas que o bairro enfrenta. Ainda assim, este não deixa de ser um lugar querido para quem lá vive e que fala dele com carinho e sentimento de pertença.


Natália: “Este é um bairro pequeno; tem partes boas e partes más. Tem partes que precisam realmente de ser melhoradas. Apesar de estarmos revoltadas, temos de pensar que é onde vivemos, é o país que temos, são as pessoas que temos e são os governantes que temos”.


Graça: “E aguenta o Zé Povinho; é que aguenta tudo!”


Natália: “Ó filha, mas em contrapartida temos umas casinhas nossas e temos de olhar para o lado e ver que há muito pior!”






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